Entre elogios ao Legislativo, críticas ao Executivo e alertas ao Supremo Tribunal Federal (STF), José Murilo de Carvalho, um dos mais importantes historiadores do Brasil, traça um panorama político pessimista do país. Em entrevista ao Correio, o pesquisador reflete sobre uma nação marcada pelas incertezas, que marcha rumo a uma crise econômica de dimensões ainda desconhecidas, enquanto sofre com as dezenas de milhares de mortes provocadas pela pandemia do novo coronavírus e assiste a grupos de extrema direita desafiarem os Poderes constituídos.
“Estamos perdendo o bonde da história”, alerta. José Murilo completará 82 anos em menos de um mês, a maioria deles dedicados à pesquisa. Ele é graduado em sociologia e política pela Universidade Federal de Minas Gerais, mestre em ciências políticas pela Universidade de Stanford, em Palo Alto, Califórnia, e pós-doutor em história da América Latina pela Universidade de Londres.
José Murilo destaca que o Brasil é obrigado a enfrentar o passado, que nunca soube como resolver, e admite: não entende como a alta participação eleitoral do país não resulte em “políticas voltadas para o atendimento das necessidades dos milhões de eleitores em situação vulnerável”. . Ele define esta discrepância como um “grande enigma”.
Especialista no passado, José Murilo demonstra certa descrença quando questionado sobre o futuro. Para ele, o modelo de gestão do presidente Jair Bolsonaro, gerador de crises políticas, desequilibrou o balanço entre os Poderes, levou ao agravamento da pandemia e prolongará a má situação do país.
“Já estava difícil sair da crise econômica, agora, está muito mais. Teremos menos recursos e mais gastos. E entre as medidas adotadas, muitas delas corretas, nenhuma visa reduzir a desigualdade social, a grande pedra amarrada a nosso pescoço”, ressalta.
Ele destaca, porém, que “nossa democracia ainda tem recursos para sobreviver às ameaças”. “Congresso e Judiciário funcionam, a imprensa está vigilante, as instituições da sociedade civil estão operantes.” Confira a entrevista a seguir:
Quais são os principais reflexos do passado brasileiro que o senhor identifica no cenário político atual?
Há 130 anos, não conseguimos construir um sistema político que seja, ao mesmo tempo, democrático, com inclusão política e social, e republicano, com liberdade, legalidade e bom governo. Caminhamos de crise em crise pontuadas por intervenções militares: 1889, 1930, 1937, 1945, 1954, 1955, 1964.
São esses reflexos que tornam nossa democracia claudicante? Há quem afirme que o país já não vive mais uma democracia. O senhor concorda?
Nossa democracia ainda tem recursos para sobreviver às ameaças. Congresso e Judiciário funcionam, a imprensa está vigilante, as instituições da sociedade civil estão operantes.
Como o senhor vê a postura do Executivo federal perante o povo e os outros Poderes num momento em que vivemos, ao mesmo tempo, uma crise política e sanitária e nos encaminhamos para uma crise econômica?
O Executivo federal é, hoje, a principal ameaça à estabilidade política. Divide, agride, ameaça, em vez de tentar unir o país para enfrentar a catástrofe da pandemia e da concomitante crise econômica. Em governo presidencialista, isso inviabiliza o planejamento e a implantação de políticas públicas e dificulta a saída da crise.
Como avalia o desequilíbrio entre os Poderes, hoje? Existe esse desequilíbrio? O STF, por exemplo, está indo além de suas atribuições? E o Congresso?
As provocações do Executivo têm levado a reações aos outros Poderes. Os membros do Judiciário, por sua vez, deixam-se levar por discussões pela imprensa, fora dos autos, perdendo com isso respeitabilidade. Surpreendentemente, o Poder tradicionalmente menos confiável perante a opinião pública, o Legislativo, tem se comportado bastante bem.
Recentemente, o presidente disse que as Forças Armadas serviriam para moderar os Poderes. O governo está repleto de militares no primeiro escalão. Como o senhor avalia a atuação deles? É preciso se preocupar, por exemplo, com o papel do Exército no Brasil?